Gênero e domesticidades em representações midiáticas
Marinês Ribeiro dos Santos, Ana Caroline de Bassi Padilha, Pamela Bostelmann, Lindsay Jemima Cresto, Cláudia Regina Hazegawa Zacar
O momento que estamos vivendo, configurado pela pandemia da Covid-19, tem colocado em questão os sentidos convencionalmente atribuídos ao espaço doméstico. Com a intensificação dos trabalhos de cuidado atribuídos às mulheres, o aumento da violência doméstica e a impossibilidade de afastamento social para a maioria da população, a noção da casa como espaço de refúgio e descanso não se sustenta mais. Além disso, a incorporação do trabalho remunerado à rotina do lar nos segmentos sociais mais privilegiados também perturbou os limites estabelecidos entre esferas pública e privada. Em diálogo com esse panorama, a proposta desta mesa tem como foco a discussão de visões normativas sobre o ambiente doméstico, interrogando a sua relação com clivagens de gênero, sexualidade, raça e classe social. Ganham relevo abordagens históricas comprometidas com a problematização de representações culturais hegemônicas produzidas pelas mídias de grande circulação, tais como revistas ilustradas, catálogos de exposições, imagens publicitárias e blogs de decoração. Interessa colocar em perspectiva estratégias discursivas e materiais que constituem e sustentam a naturalização de diferenças como desigualdades, abordando o seu envolvimento não apenas na produção dos espaços domésticos, mas também dos próprios sujeitos que os habitam.
Resumos das comunicações:
1. Tecnologias do lar e feminilidades normativas na revista Casa & Jardim entre os anos 1950 e 1960
Esta comunicação objetiva refletir sobre a construção de representações de feminilidades associadas ao uso de tecnologias do lar na revista Casa & Jardim. Para tanto são analisadas estratégias textuais e imagéticas presentes em reportagens e anúncios publicitários veiculados no periódico entre as décadas de 1950 e 1960. Nesse período, as revistas direcionadas para públicos femininos buscavam criar uma identificação entre as mulheres e as práticas de consumo doméstico, apresentando as tecnologias do lar, especialmente os eletrodomésticos, como recursos capazes de facilitar as tarefas diárias. Contudo, em paralelo, os padrões de limpeza, organização e administração do lar também tornaram-se significativamente mais exigentes. Entre os tipos de feminilidades associadas ao uso de eletrodomésticos estavam as figuras da “rainha do lar”, da “cozinheira prendada” e da “dona de casa eficiente”. Operando como pedagogias de gênero, tais figuras desempenhavam um papel importante na construção de feminilidades normativas articuladas à afirmação de um estilo de vida moderno ligado ao modelo de família nuclear heterossexual, branca e de classe média.
2. O corpo feminino como parte da paisagem doméstica: articulações entre vestuário e decoração em revistas ilustradas nos anos 1960
Resumo: Tendo como premissa a clivagem de gênero que marca a organização da vida social em esferas pública e privada, a abordagem aqui proposta objetiva problematizar a associação historicamente construída entre o corpo das mulheres e o espaço doméstico. Para tanto, dou destaque a representações que articulam semelhanças entre vestuário e decoração como estratégia para incorporar a presença feminina à materialidade da casa. A discussão está apoiada em imagens veiculadas em revistas ilustradas brasileiras durante os anos 1960, com destaque para uma reportagem publicada em dezembro de 1969 no título Decoração Claudia. Voltada para a divulgação de produtos disponíveis no mercado nacional, tal reportagem apresenta quatro reproduções fotográficas onde figuras femininas posam trajando roupas confeccionadas com os mesmos tecidos usados no revestimento dos móveis que estão sendo promovidos. A presença das modelos – elas são brancas, magras e jovens – cumpre uma função “decorativa” nos ambientes, reverberando o efeito esperado das peças de mobiliário propriamente ditas. A partir da discussão dessas imagens, pretendo abordar o desempenho das representações veiculadas nas mídias impressas como tecnologias de gênero. Quero argumentar que a construção do corpo feminino como parte da paisagem doméstica opera na naturalização da esfera privada como algo que concerne às mulheres. Nesse processo, práticas relacionadas aos cuidados e embelezamento do corpo e do lar se fundem à noção de feminilidade. Entre outros efeitos, isso implica a configuração de representações de gênero normativas, além de contribuir para a manutenção da divisão desigual do trabalho doméstico.
3. Representações da “mulher do futuro” nos periódicos brasileiros: cultura material como tecnologia de gênero.
O imaginário mobilizado pela corrida espacial no período pós-guerra inspirou uma vasta iconografia que ajudou a compor as materialidades cotidianas durante as décadas de 1960 e 70. Em diálogo com a revolução comportamental em curso e com os avanços tecnológicos da época, essa iconografia tornou-se uma importante fonte de inspiração em diversos campos da produção cultural. Tendo este cenário em vista, me proponho a discutir a articulação entre produções ligadas à linguagem espacial na decoração de interiores e no vestuário a partir de publicações veiculadas em revistas ilustradas voltadas para públicos femininos. Essas revistas colocaram em circulação uma série de recursos textuais e imagéticos que evidenciam aspectos do comportamento social da época, servindo como base para a investigação de novas representações de feminilidades que surgiram naquele período. Com a argumentação aqui defendida, pretendo evidenciar que a materialização da linguagem associada ao imaginário espacial pode ser entendida como parte das prescrições culturais que influenciaram na construção e reforço de identidades normativas de gênero, classe e geração. Atuando como tecnologias de gênero mediante a articulação entre decoração e vestuário, tais representações criavam e reforçavam visões ligadas à noção de “mulher moderna”. A escolha dos materiais e configuração das roupas, móveis, bem como a própria composição dos interiores domésticos, funcionou como base para a proposição de novas práticas corporais associadas à cultura jovem e às mudanças comportamentais. Com isso, as narrativas presentes nas revistas mobilizavam estratégias que atualizavam discursos sobre o corpo feminino em associação com as transformações nos modelos de domesticidade.
4. Cultura material e masculinidades nos interiores do blog de decoração “Do Edu”
Resumo: Nessa comunicação, tenho como objetivo discutir a produção de um modo de decorar classificado como masculino, promovido por um blog de decoração voltado para homens. A pesquisa está centrada nas publicações do blog Do Edu durante o período de 2012 a 2019. Nessas publicações, a decoração de interiores domésticos é tratada com base em narrativas sobre personalização e práticas do tipo “faça você mesmo”. A valorização das masculinidades por meio da decoração fundamenta-se em abordagens convencionais sobre comportamentos esperados dos homens, sobretudo ligados à ideia de “colocar a mão na massa”. Por meio da análise de imagens e textos, enfatizo a importância da cultura material como recurso para a construção de ambientes marcados pelo gênero. Nesse sentido, entendo o blog Do Edu como uma tecnologia de gênero, que promove interpretações específicas sobre masculinidades e feminilidades mediante certas estratégias discursivas e materiais. Com isso, pretendo afirmar a importância da reflexão crítica sobre a participação da prática do design na reprodução de desigualdades de gênero, visando o seu direcionamento para a transformação emancipatória de comportamentos e visões de mundo associados ao espaço doméstico.
5. A Casa Cor Paraná e a noção de “lar como refúgio”: marcações de classe e de gênero em representações de interiores domésticosResumo: A Casa Cor Paraná é uma mostra brasileira de arquitetura, design e paisagismo que acontece anualmente na cidade de Curitiba, desde 1994. A mostra faz parte do Grupo Casa Cor, responsável pela organização de eventos similares em outras 21 cidades no Brasil e 6 localidades em outros países americanos. Ao longo de suas 26 edições, a Casa Cor Paraná já exibiu mais de 1.200 ambientes, desenvolvidos por mais de 750 projetistas locais. Fotografias e textos relativos aos ambientes expostos têm sido veiculados em diferentes mídias, tais como a revista anualmente editada pela organização da mostra, o website a Casa Cor, redes sociais como Facebook e Instagram, e ainda periódicos, portais e blogs relacionados à decoração de interiores. Por meio dos discursos textuais e imagéticos em circulação, nota-se que a mostra tem, ao longo de sua trajetória, constituído um ideal de “lar como refúgio”. Trata-se de uma noção que remonta à difusão da metáfora das esferas separadas (público/privado), que se deu com a intensificação dos processos de industrialização e que caracterizou a configuração dos interiores domésticos burgueses novecentistas. No contexto do Brasil recente, pretende-se nesta comunicação discutir como tem sido (re)produzido e atualizado esse ideal de “lar como refúgio”, a partir da análise de fotografias e textos relativos a ambientes exibidos na Casa Cor Paraná nos últimos dez anos. Classe e gênero são assumidas como categorias centrais para a discussão, no intuito de explicitar como a noção de “lar como refúgio” se constitui em articulação com significados e valores associados às masculinidades, bem como a ideais de casa e de família que contrastam com a realidade de boa parte da população brasileira.
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